Filosofias africanas e afro-brasileiras e as tecnologias de terreiro em construções civilizacionais do povo brasileiro
Uma nova história tem sido contada sobre o Brasil e os brasileiros a partir das intervenções culturais majoritárias das nossas populações negroafricanas que servem de base criacional para o que de mais profundo transdiz deste país em termos identitários, culturais, econômicos, religiosos, sociais, lúdicos, artísticos, enfim, operacionais. Somos, majoritariamente, negros em quantidade e qualidade socioexistenciais. Grande parte desse aparato filosófico e cultural praticado no Brasil foi salvaguardado pelos terreiros. Ao se pensar numa simples dança no carnaval de rua de Salvador, ou numa cena de identidade cultural em um filme pernambucano, ou um tratado sobre a geografia global à luz do pensamento de Milton Santos; ao se sentir a cena de Maria Bethânia saindo dos palcos em seus shows memoráveis, ou perceber a voz de Virgínia Rodrigues acompanhando o berimbau sagrado de Marco Lobo; ao lermos a literatura de Conceição Evaristo, ou a atuação em novelas de Chica Xavier, ou lermos os poemas de Lívia Natália. Receber o violão de João Gilberto acoplado ao violão de Gilberto Gil, ainda as letras de Gil no canto minimalista de João... Se alcançamos os escritos de Jorge Amado, os filmes de Nelson Pereira dos Santos, os discos de Zezé Motta e atuação de Grande Otelo... Se ouvimos os batuques do samba -reggae do Olodum, a orquestra de tambores de Naná Vasconcelos, ou a bateria luminosa da Estação Primeira de Mangueira... Se existe um Gerônimo criando canções na Bahia... Se temos uma mulher negra com feições de estadista governando sua comunidade, ou se temos uma Dona de Casa fazendo economia para administrar a sobrevivência de seu lar no dia a dia... Devemos tudo isso às tecnologias que os terreiros salvaguardaram aos longos dos anos, nas experiências africanas e afro-brasileiras, nesses territórios que fundaram isso que ainda chamamos de religiões de matrizes africanas.
O terreiro é um instrumento de construção de sociedades em termos civilizacionais. Suas tecnologias sustentam epistemologias que garantem e podem garantir uma vida coletiva mais sustentável em acordo com a sacralidade da natureza e os ensinamentos filosóficos deixados por esta epistemologia central que eu chamo aqui, à luz de Eduardo Oliveira, de ancestralidade. A ancestralidade negroafricana e indígena presente no sentimento de mundo, no arsenal de conhecimento, que centralizaram o existir intelectual e sacerdotal de mulheres negras como Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Iemanjá, Makota Valdina, Iyá Zulmira de Zumbá. O terreiro é um aporte de saberes e fazeres que constroem conhecimento numa mesma lógica científica operacionalizada pelas academias erguidas nas universidades. É, por assim sentir, uma salvaguarda extensiva de vários fundamentos que intervieram , intervêm e intervirão no desenrolar histórico da sociedade brasileira. O terreiro é este confluir de culturas, predominantemente africanas e indígenas, mas também de fragmentos culturais católicos, onde há a confluência simétrica de diferenças culturais sem a sobrepujação de uma sobre as outras, como bem ensinou o teórico quilombola Nego Bispo.
O terreiro é uma instituição construtora de cidadania, um instrumento promotor de educação, um lugar de sistematização familiar que dá abrigo psicológico, material, (re) humaniza pessoas, valoriza a autoestima, projeta sonhos, modifica realidades. E cuida da espiritualidade, alimentando a fé, a esperança em ser, mobilizando as memórias ancestrais que dão sentido à nossa existência no presente, talvez seja essa a sua mais importante tecnologia.
* Marlon Marcos é poeta e antropólogo, professor da UNILAB (Campus dos Malês/BA), membro do Nyemba
